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ANGÚSTIA INFANTIL: UM ESTUDO DE CASO CLÍNICO

Ricardo Dih Ribeiro

11/10/2021 22:39:04


RESUMO

O presente artigo apresenta os resultados de um estudo de caso clínico que buscou compreender os processos psíquicos associados às manifestações de angústia e do sintoma na infância. Com base na teoria psicanalítica, pretendeu-se identificar a representação do paciente de suas figuras parentais, assim como seu lugar na trama familiar. A compreensão deste caso foi realizada através das sessões de psicoterapia de orientação psicanalítica e do Teste das Fábulas (Cunha & Nunes, 1993). A análise do caso permitiu verificar que a angústia estava associada às questões da configuração familiar que colocavam o paciente em uma posição de dependência da função materna (exercida pela avó). Supõe-se que a representação era de uma figura materna sufocante, ficando alienado no lugar de objeto. Espera-se, com este trabalho, fornecer subsídios para o aprimoramento teórico conceitual da angústia e do sintoma na infância, bem como para o trabalho clínico em psicoterapia de orientação psicanalítica.

Introdução

É consenso entre as escolas da linha psicanalítica que a infância ocupa um lugar central na constituição e estruturação psíquica do sujeito. Pela importância desse período da vida, as diferentes abordagens psicanalíticas compreendem as vicissitudes da primeira infância como determinantes para a personalidade e para as escolhas futuras do sujeito (Ferrari & Donelli, 2010). Todavia, a importância dada ao período da infância como momento fundamental do desenvolvimento humano, principalmente considerando os aspectos de estruturação do aparelho psíquico ligados à sexualidade e do desejo parental, é recente.

Nesse sentido, o lugar que a infância ocupa na psicanálise atual re?ete toda uma mudança na concepção dessa faixa etária, ocorrida ao longo dos séculos. Assim, ao re?etirmos sobre o lugar da infância ao longo da história, observamos que apenas no século XIX, com a posição freudiana acerca da sexualidade e o infantil, é que vai acontecer uma profunda transformação na forma como essa era entendida. Na Idade Média, a criança era vista como um pequeno adulto, não sendo percebida por suas características merecedoras de cuidados especí?cos e especiais. Foi somente com as teorizações de Freud (1996), mais precisamente em 1905, com os “Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade”, e sua teoria sobre o complexo de Édipo, que essa concepção se modi?cou, contemplando a criança como um ser dotado de sexualidade, com um corpo pulsional, de desejo (Costa, 2007).

A criança, para a psicanálise, sente tristeza, raiva, solidão, desejos destrutivos, vivencia con?itos e é portadora de sexualidade. Isto quer dizer que a criança é um sujeito desejante, que demanda amor e não somente objetos que satisfaçam suas necessidades. No entanto, a constituição da criança começa mesmo antes de ela nascer, ou seja, ela já é investida pelos pais, cuidadores e pela família. É marcada pelo desejo inconsciente dos pais (que possuem marcas de seus respectivos pais), já representando algo para um e para o outro. Assim, em função da história singular de cada um de seus pais, ela já possui um lugar simbólico demarcado na trama familiar (Priszkulnik, 2004).

Desta forma, os estudos psicanalíticos abordam a questão das manifestações de sintomas na infância como anúncio de que algo não vai bem, não apenas com a criança, mas também com o casal parental, pois a criança é o objeto de desejo inconsciente dos pais (Motta, Silva & Castro, 2010). Segundo Lacan (2003), o lugar dos pais no sintoma infantil é fundamental, podendo o sintoma na criança vir a representar uma resposta dela ao que existe de sintomático na estrutura familiar ou uma apropriação pela criança das produções fantasmáticas do Outro.

Nesse sentido, para além das contribuições freudianas sobre a importância da sexualidade infantil e da relação estabelecida com os pais da infância, Lacan (2003) destaca que o desejo parental vai igualmente dar expressão ao que há de sintomático na criança. Por exemplo, o desejo materno é fundamental para incluir a criança em um lugar de existência. Porém, a criança não deve ?car presa a esse desejo. Da mesma forma, precisa da função paterna para romper com essa relação dual, para que, assim, não seja para sempre o objeto do desejo da mãe. Todavia, a criança pode vir a ocupar o lugar de fantasma do desejo materno. Com isso, o sintoma infantil relaciona-se fortemente com as funções parentais, ou seja, com a trama familiar na qual ela está inserida (Zornig, 2008). Destarte, em resposta a essas situações, a criança irá expressar seu sintoma em relação à posição que ocupa nesta trama.

O sintoma infantil manifesta-se de diversas maneiras. Há, porém, uma manifestação clínica fundamental nos processos psíquicos, que é a angústia. Desde os primórdios da psicanálise, no caso clínico do Pequeno Hans, Freud (1909) discorre extensamente sobre a compreensão das manifestações de angústia na infância, como também vai inaugurar a análise infantil. Naquele momento inicial, questões da sexualidade e da fase edípica predominaram na leitura freudiana do sintoma de Hans. Sem dúvida, na atualidade, o entendimento da angústia infantil reveste-se de uma leitura singular e complexa. Permanece, porém, dentre todas as situações relativas ao sofrimento psíquico na infância, ocupando um lugar central na apreensão do sintoma da criança (Zornig, 2008).

Ainda hoje, o estudo das manifestações de angústia infantil mantém-se como um tema instigante voltado para o entendimento de como uma criança poderia responder com o seu sintoma ao que há de sintomático na estrutura familiar? Nesse sentido, perguntamo-nos como o ideal almejado pelas ?guras parentais, juntamente com suas fantasias, seus desejos e neuroses podem, de alguma forma, interferir e, por consequência, contribuir para a eclosão do sintoma na criança? E, nesse caso, qual a representação1 da ?gura materna e paterna bem como do lugar que a criança ocupa na trama familiar?

Tais questionamentos deram origem a esta pesquisa, que discute os processos psíquicos associados às manifestações de angústia e do sintoma na infância, a partir do estudo de caso de um menino de oito anos que manifestava intensa angústia. Iniciaremos esta discussão retomando de forma sintética as principais ideias freudianas e contribuições posteriores de autores pós-freudianos.

Nos desdobramentos da construção teórica de Freud, o conceito de angústia pode ser entendido, de uma forma geral, como um afeto de desprazer que se manifesta no sujeito, em lugar de um sentimento inconsciente, na espera de algo que ele não pode nomear (Chemama & Vandermersch, 2007). Historicamente, encontramos duas teorias na evolução das ideias freudianas para a compreensão da angústia. Nos anos de 1890, na primeira teoria da angústia, esta era interpretada, basicamente, como a impossibilidade de elaboração psíquica do sujeito, tendo a inscrição corporal como uma via possível. Nesse sentido, a neurose de angústia2 manteria a tensão física sexual longe do psíquico, impossibilitando sua elaboração psíquica (Freud, 1895/1996). Nos anos de 1920, na segunda teoria da angústia, esta passa para o domínio do psíquico. Freud (1926/1996), então, a?rma que é da angústia que surge o recalque3, e a angústia viria como um sinal do eu, sinal de um perigo, de um desejo enigmático, de um medo imaginário da castração. É no caso clínico do Pequeno Hans, que Freud (1909/1996) vai introduzir uma nova entidade clínica, chamada de histeria de angústia, cujo processo se assemelha ao da histeria, mas na qual o sintoma fóbico é central (Chemama & Vandermersch, 2007).

Ao percorrer as contribuições pós-freudianas, encontramos em Lacan um estudo aprofundado com relação à angústia. Há uma distinção importante entre a angústia em Freud e a angústia em Lacan. Em Freud (1926/1996), a angústia não possui objeto, e seria basicamente um sinal para que o recalque fosse acionado, estando vinculada ao temor da castração e à perda de um objeto fortemente investido. A angústia na concepção de Lacan (2005) não seria sem objeto, mas estaria relacionada com o objeto perdido, objeto que Lacan nomeou de objeto a.

É importante explicitarmos o lugar no qual se constitui o objeto a. Para isso, voltamos para a primeira experiência de satisfação do bebê (satisfação total, mítica), quando ele demanda, por exemplo, através do grito o seio (alimento). A satisfação de sua necessidade fará com que essa experiência seja única. Quando demandar o seio novamente, a satisfação será somente parcial, pois jamais será igual à primeira. A partir disso, surgem os mal-entendidos, isto é, quando o bebê chora por fome, e sua mãe acha que ele está com frio. A criança, então, vai transformar o objeto real em uma imagem alucinada e, quando houver a ausência do objeto de satisfação, fará com que a imagem dele também constitua uma representação simbólica. Assim, sempre que procurar novos objetos, o sujeito irá tentar reencontrar o objeto original que foi perdido, o objeto da satisfação total (Nasio, 1993).

Essa primeira experiência, então, marcará uma perda, um resto, que causa no sujeito a busca do reencontro, isto é, o reencontro do objeto perdido. É aí que o objeto a aparece, nomeando esta falta, no lugar de resto. Mas por quê? O objeto a vem no lugar dessa falta, pois, para o sujeito ser desejante, é preciso que o objeto causa de seu desejo lhe falte. É quando algo vem ocupar o lugar do objeto faltoso do desejo, que a angústia surge, alarmando que o lugar da falta que é estruturante pode vir a ser ocupado. A angústia vem denunciar a falta da falta, isto é, vem denunciar a completude do sujeito, não castrado. Assim, a angústia vai apontar para a tentação de que não haja falta no outro, ou seja, que o outro não seja castrado, faltante, vindo alarmar essa completude (Pisetta, 2009).

A partir disso, ao adentramos nas manifestações de angústia, inevitavelmente passamos pelo campo do sintoma na infância, pois as ligações entre o conceito de angústia e o conceito de sintoma se tornam evidentes. O sintoma, na perspectiva psicanalítica, é um fenômeno subjetivo, que constitui a expressão de um con?ito inconsciente (Chemama & Vandermersch, 2007). Na concepção de Freud (1926/1996), o sintoma é o retorno do recalcado, ou seja, a libido insatisfeita que encontra uma satisfação substituta. O sintoma advém do recalcamento e torna-se independente do eu, impedindo que os sintomas permaneçam isolados buscando agregá-los a sua organização. No entanto, o sintoma liga-se à angústia quando testemunha que o recalque falhou. Assim, a angústia é anterior ao sintoma, e a constituição deste vem como mecanismo para limitar a aparição da angústia.

Todavia, se o sintoma tenta preencher a falta primordial, mascarando a angústia, esta vem reclamar seu lugar de constituição, isto é, de que há falta. A angústia indica, então, que a falta que constitui o sujeito vem a faltar, já que está sendo preenchida. Ao abordar o sintoma infantil, Lacan (2003) o relaciona com a resposta da criança ao que existe de sintomático na estrutura familiar, podendo a criança se apropriar das produções fantasmáticas do Outro. Quando o sintoma decorre da subjetividade da mãe, a criança é correlata de uma fantasia. Assim, quando não tem mediação (em geral, assegurada pela função paterna), a criança ?ca exposta às fantasias da mãe, tornando-se objeto desta e tendo como função revelar o que está oculto. A criança, então, substitui este objeto, mostrando a falta em que se especi?ca o desejo (da mãe). Seguindo por esta linha, Mannoni (1999) a?rma que o sintoma aparece na criança como uma máscara, e que seu papel é esconder o acontecimento perturbador. Na ausência do direito de se signi?car na linguagem, é através do sintoma que a criança manifesta o que tem a dizer.

Contudo, é preciso discriminar em que fase do desenvolvimento psíquico se encontra a criança. Algumas manifestações sintomáticas podem surgir na criança em uma fase em que o aparelho psíquico pode não ter se constituído para que haja inscrição das representações. Com isso, essas manifestações se apresentam de forma transitória. Não podem ser consideradas como sintomas ou uma constituição patológica, mas sim como uma tentativa da criança de se organizar psiquicamente (Zimmermann, 1997; Zornig, 2008).

Assim, a constituição da subjetividade na criança advém do campo do Outro. A criança se constitui psiquicamente através de sua relação com as funções parentais e, por consequência, o sintoma, muitas vezes expressado pelas manifestações de angústia, relaciona-se a uma fase posterior, de ordem mais edípica. Portanto, é a alienação imaginária do bebê com o Outro e a função primordial do pai no complexo de Édipo que vai possibilitar à criança se constituir como sujeito desejante. É preciso, então, que ocorra uma separação da criança do desejo mortífero materno, isto é, separação da criança de ser para sempre o objeto de desejo da mãe, e é neste momento que a função paterna é essencial (Zornig, 2008).

A partir disso, ?ca claro que a angústia infantil está extremamente ligada à trama familiar, na relação da criança com os pais. É através do complexo de Édipo e da castração que as manifestações de angústia poderão surgir no sujeito, pois o Édipo e a castração marcam um corte na relação da criança com seus pais (cuidadores). Porém, a neurose e os desejos parentais vão inferir de forma profunda na constituição de seu sintoma (Couto & Chaves, 2009; Fuks, 2001; Rego, 1998).

Sendo assim, este artigo tem como objetivo discutir os processos psíquicos associados às manifestações de angústia e do sintoma na infância, a partir do estudo de caso de um menino de oito anos que manifestava intensa angústia. Indaga-se como esta criança poderia responder com o seu sintoma ao que há de sintomático na estrutura familiar. Da mesma forma, visa compreender qual a representação da ?gura materna e paterna bem como o lugar que a criança ocupa na trama familiar.

Método

O método adotado nesta pesquisa é o clínico-qualitativo que, segundo Turato (2005), compreende mais profundamente sentimentos, ideias e comportamentos de pacientes e também de seus familiares. Além disto, o pesquisador está incluído como instrumento de pesquisa, usando de seus sentidos para abranger o objeto em estudo. O método clínico-qualitativo é voltado em especí?co para os settings das vivências em saúde, buscando interpretar os signi?cados, trazidos pelos sujeitos, dos múltiplos fenômenos de seus problemas. Este método aborda as relações, as estruturas sociais e os atos quanto à sua transformação e construção signi?cativa.

Em relação a esta pesquisa, o aspecto clínico-qualitativo se insere na perspectiva da pesquisa em psicanálise. Conforme Iribarry (2003), a pesquisa em psicanálise trabalha tanto com a impossibilidade de prever o inconsciente, quanto com a singularidade e o estilo particular do analista (pesquisador) que se coloca para um outro, não incluindo a generalização. O pesquisador está em um processo de descoberta e revelação e até de renovação de seu campo.

Participante, procedimentos, instrumentos

A presente pesquisa foi constituída pelo estudo de caso de uma criança de oito anos, do sexo masculino, denominado Nicolau. Ele foi encaminhado para atendimento na clínica-escola de uma Universidade da região metropolitana do sul do País. O caso foi delimitado com base nos motivos de encaminhamento, que se constituíram por manifestações de angústia, medos e situações associadas a comportamentos fóbicos.

Primeiramente, realizou-se uma busca nos prontuários da lista de espera da clínica- escola. Após a identi?cação de crianças cujas queixas se restringiam às situações de medos e manifestação de angústia, foram realizados os contatos com os responsáveis para veri?car o interesse no atendimento e a con?rmação do sintoma. Neste primeiro contato, foi explicitado o objetivo do trabalho, e solicitada a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), que foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, CEP 10/154, respeitando todas as normas da Resolução 196/96 do Ministério da Saúde. A criança que participou do estudo de caso tinha a possibilidade de ser encaminhada para seguimento do atendimento psicológico, caso necessitasse. Com a concordância, foram combinados os atendimentos. Inicialmente, fez-se uma entrevista para coletar os dados da história da criança, do sintoma e outros dados. As demais crianças foram encaminhadas para atendimento na Clínica.

Foram realizados vinte e um atendimentos, com frequência semanal, com duração da sessão de aproximadamente 45 minutos. Após cada sessão, o relato foi efetuado pela terapeuta, a partir da associação livre. Os instrumentos utilizados foram a psicoterapia de orientação psicanalítica, com entrevistas não estruturadas com pais e/ou responsáveis (quando necessário), e o Teste Projetivo das Fábulas. Este foi aplicado como forma de sistematizar as principais representações infantis acerca de situações con?itivas da infância, especialmente daquelas ligadas às ?guras parentais, sendo que o objetivo principal foi o de utilizá-lo como um dispositivo clínico.

Com base no material coletado através das sessões de psicoterapia de orientação psicanalítica com a criança, o Teste das Fábulas e entrevistas com responsáveis, realizou-se a análise compreensiva do caso. O estudo do caso está ligado profundamente à experiência clínica. Em primeiro lugar, acontece a sessão e, logo, a elaboração do sentido daquilo que ocorreu no atendimento, seguindo o caminho do pathos do paciente. A escrita da clínica psicanalítica acontece a posteriori à clínica. Ao se escrever sobre o caso, abre-se caminho para entrarmos no campo da experiência compartilhada no nível de teorização (Guimarães & Bento, 2008). Na presente pesquisa, realizamos o estudo de caso, através da integração do material. Para a teorização da clínica, utilizamos como referencial o aporte psicanalítico para discussão e re?exão sobre o signi?cado inconsciente das produções.

Psicoterapia de orientação psicanalítica infantil

Ao direcionarmos nossa atenção para os atendimentos de orientação psicanalítica infantil, remetemo-nos à descoberta da análise infantil propriamente dita que só aconteceu com o caso do Pequeno Hans, no qual Freud (1909/1996) tornou este o caso modelo da psicanálise de crianças. Este caso clínico demonstra que a interpretação com crianças é possível. A criança é o suporte do que os pais, muitas vezes, não podem representar. Com isso, ela revela o que se deseja, geralmente, manter oculto (Mannoni, 1999).

A psicoterapia de orientação psicanalítica infantil segue o pressuposto de que o psicoterapeuta não é um educador, não julga nem aconselha. O trabalho do terapeuta é principalmente observar a criança, colocar em palavras suas angústias, o que ela sente, seus con?itos. Seu papel é apresentar-se como um pro?ssional neutro, à escuta do sofrimento da criança. É a análise da transferência (Dolto, 1996).

Nos desdobramentos da psicoterapia de orientação psicanalítica com crianças, consequentemente, a relação transferencial aparece, pois a psicoterapia de crianças não se dá somente pela fala livre, como a dos adultos. Mas como pensar a transferência na psicoterapia de crianças? Na psicoterapia de crianças, estamos diante de diferentes transferências, ou seja, da transferência do terapeuta, dos pais e da criança. Os pais, com seus afetos, suas emoções e seus con?itos, fazem parte do sintoma da criança; sendo assim, fazem parte também do tratamento. Portanto, ao tocarmos no sintoma da criança, arriscamo-nos a fazer emergir o que no sintoma servia para alimentar ou para obturar a ansiedade do adulto. Sendo assim, a questão é ajudar a criança a sair de um certo jogo de equívocos, o que pode ser alcançado se soubermos que a experiência da transferência no tratamento infantil se dá através do terapeuta, da criança e dos pais (Mannoni, 1999).

Partindo do mesmo questionamento, o terapeuta de crianças se depara com duas posições: na primeira, ele é o parceiro do jogo, no qual a criança vai apresentar e representar sua história; no segundo, o terapeuta vai esperar o “tropeço”, isto é, o novo, o que vai surgir no decorrer do tratamento. Em particular na psicoterapia de orientação psicanalítica com crianças, encontramos alguns desa?os, principalmente no que diz respeito às decisões tomadas pelos pais. São eles que procuram o tratamento para o seu ?lho, são eles que, em geral, levam a criança para a psicoterapia e tentam encontrar soluções que façam a criança voltar para o caminho certo da educação que lhes deram (Costa, 2009; Roizin, 2009).

É preciso estarmos atentos para a questão referente à queixa da criança que se con?gura na psicoterapia de orientação psicanalítica, e que não é (e não será) necessariamente a mesma da queixa dos pais. No entanto, não podemos dedicar menos atenção à fala deles. Muito pelo contrário; escutar os pais faz parte do tratamento. Escutá-los para identi?car em que lugar a criança encontra-se situada no desejo deles, no discurso que eles mantêm em relação ao seu ?lho. É aí que a psicoterapia da criança pode se tornar inquietante para os pais. Muitas vezes, é o que faz com que eles retirem a criança do tratamento: geralmente neste ponto, quando algo começa a afetá-los. A partir do manejo da transferência com os pais, com a criança e o desejo do terapeuta é que o enigma se apresenta, e o tratamento poderá se transformar em questão para um ou mais dos sujeitos envolvidos (Costa, 2009; Roizin, 2009).

No atendimento com crianças, o terapeuta introduzirá, através de sua espera e de sua não demanda, o confronto da criança com um adulto que não é imperativo, que não ocupa a posição de mestre, que não lhe dá orientações do que deve ou não fazer, não lhe ensina, en?m, não lhe pede nada. Isso aparece como efeito apaziguador para a criança, pois ela se depara, então, com um Outro que deseja nada especial, apenas que ela siga suas questões com ?ns de desvelar o desejo que a leva para a retomada da construção do desenvolvimento. Portanto, o tratamento virá a proporcionar a passagem da criança da posição de objeto – na qual foi destinada a ocupar na fantasia do Outro – para ter acesso ao seu desejo em uma condição de sujeito (Costa, 2009).

Sendo assim, na clínica com crianças, o terapeuta deve ter a disponibilidade de ouvi-la, como também a sua família, pois, se não se escuta a demanda trazida pelos pais, a análise da criança não se torna possível. A escuta analítica dos pais destaca o nó que os une à criança através do sintoma desta. Isto quer dizer que a questão que estava antes alienada, retorna para o sujeito que a traz. A estrutura que sustentava os lugares distribuídos de determinada maneira desmonta-se. Desmontar a estrutura que se apresentou, destacando o enodamento que une os pais e a criança sintomaticamente, fará com que cada um remeta-se às suas próprias questões (Faria, 1998).

Teste das Fábulas

O Teste das Fábulas, aplicado como instrumento para análise do caso, foi validado por Louisa Duss (cujos primeiros estudos foram feitos em 1940) e traduzido para o Brasil pelas autoras Jurema Alcides Cunha e Maria Lúcia Tiellet Nunes em 1993. Pode ser utilizado na clínica para avaliação psicodinâmica com crianças, adolescentes e adultos. A técnica deste teste é projetiva aperceptiva (interpretação subjetiva da percepção), facilitando a projeção e a manifestação do material inconsciente. Neste teste, o sujeito faz uso da projeção, sendo possível avaliar as áreas da personalidade. É um instrumento qualitativo, com referencial teórico freudiano (Cunha & Nunes, 1993).

As fábulas possuem vantagens para a prática de diagnóstico e psicoterapia. Entre essas vantagens, está o bom contato com o sujeito, uma transferência inicial positiva e identi?cação de projeções. Cada fábula é dirigida a uma área da vida do sujeito e busca fazer emergir os conteúdos latentes que possam estar provocando angústia (Fonseca & Mariano, 2008). A técnica projetiva é enriquecida com conceitos teóricos que ajudam a chegar a uma apreensão do caso. O Teste das Fábulas é indicado para detectar situações de crises, neuroses e psicoses. Também é um útil recurso para o entendimento psicodinâmico da criança (Cunha & Nunes, 1993). Portanto, cada um dos instrumentos projetivos possui particularidades próprias de interpretar os resultados, mas apresenta sempre algo peculiar do sujeito e seu inconsciente (Fonseca & Mariano, 2008).

Ao tratarmos da relevância do instrumento do teste projetivo, remetemo-nos à importância que estes possuem na clínica, com o seu jogo de construção e reconstrução, incentivando o risco da enunciação. Para a psicanálise, o uso de testes projetivos, tanto na clínica, quanto em pesquisa, conta com algumas resistências, embora alguns estudos franceses demonstrem que a utilização deste Teste é e?caz para o tratamento (Boekholt, 1993; Rassial & Pereira, 2007; Sublime, 2003).

Os testes projetivos, que têm como ?nalidade uma avaliação psicodinâmica da personalidade, são muito usados pelos psicólogos, com a expectativa de revelar a personalidade inconsciente de seus pacientes. Com isso, as motivações pessoais, os con?itos, as experiências de vida do paciente surgem através da projeção. Sem dúvida, os testes projetivos possuem um importante valor na prática clínica e nos contextos de avaliação psicológica, e novos estudos que se utilizem destes são sempre bem vindos (Werlang, Fensterseifer & Lima, 2006). Assim, nesta pesquisa, foi utilizado o Teste das Fábulas como um dispositivo clínico, o que não deixa de ser um ato de autorização e um diferencial para a mesma.

Para Sublime (2003), os testes projetivos podem ser considerados como uma proposta metafórica: há interlocução dos assuntos, com uma série de enunciados, levando o sujeito a pronunciar-se por um ato de enunciação, incentivando uma arte singular, ato de autorização. Segundo a autora, o teste projetivo em crianças viria convocar o momento do espelho, em que a criança espera um sorriso, um olhar, ou ainda um elemento sonoro vindo do Outro, que vem nomeando, autenticando sua imagem. Somente é possível pela não indução do terapeuta e por sua atenção e implicação. Rassial e Pereira (2007) aderem à ideia de que os testes projetivos são instrumentos muito apropriados, dado que não se baseiam em autoavaliação, não reduzindo um sentimento ou o desaparecimento de sintomas (Rassial & Pereira, 2007).

Boekholt (1993) a?rma que contar uma história é falar não pela necessidade, mas pelo prazer de falar; é juntar-se ao discurso-comunicação, a um discurso lúdico. A expressão pulsional, então, afasta-se da via corporal e da palavra-coisa para dotar-se de representantes psíquicos e abrir-se ao jogo inde?nido das representações. A situação dos testes projetivos mobiliza a criança, para a capitalização de recursos psíquicos novos, e no período de latência, recorre à regressão.

Resultados e Discussão

Organizamos o caso clínico de Nicolau com base na história de vida do menino, nas sessões clínicas e na interpretação do Teste das Fábulas (Cunha & Nunes, 1993). Assim, apresentamos a síntese da história e das sessões, seguidas da análise do Teste. Por último, realizamos a discussão clínica e integração do caso.

Síntese da história de vida

Nicolau é um menino de oito anos, que cursa a terceira série do ensino fundamental. No discurso de sua mãe Rose4, Nicolau é muito nervoso, chora por qualquer motivo, não pode ser contrariado e rói as unhas dos pés e das mãos até sangrar. Rose relata que a gravidez de Nicolau foi complicada, pois ela sangrava muito. Conta que o ?lho sofreu um acidente com um ventilador em casa. O ventilador pegou fogo em seu quarto, ocasionando uma queimadura em seus pés. Ressalta, porém, que antes deste incidente, ele já era medroso; tinha vários medos, principalmente de ?car sozinho, em qualquer peça da casa. Além disso, Nicolau não fazia nada sozinho, não assistia à televisão, não ?cava no quarto e sempre solicitava ter alguém junto a ele em quase todos os momentos. No momento atual, ?ca sozinho à tarde por duas horas, mas a avó tem que “fugir do trabalho para espiá-lo5. A mãe conta que, certo dia, Nicolau gritou muito por socorro em casa, e tiveram que chamá-la em seu trabalho. Não era nada grave e, sim, o medo de ele ?car sozinho.

Seu pai, Ronaldo, reside em outra cidade. No discurso de Rose, este pai não se faz presente na vida do ?lho, chegando a ?car um ano sem ver o menino. Quando diz que vai buscá-lo, o ?lho se arruma, ?ca esperando, e o pai não aparece. A separação do casal aconteceu quando Nicolau tinha dois anos e foi um pouco conturbada, pois eles brigavam muito. Nessa época, uma das irmãs de Nicolau já tinha nascido e frequentava uma creche. A menina voltava para casa “assada“. Nessa ocasião, Rose descobriu que o dono da creche abusava da menina e o denunciou a polícia. Este momento foi muito difícil para Nicolau, que viu a tristeza e o desespero da família.

No discurso da avó Catharina, aparecem questões que nos ajudam no desenrolar do caso. A avó, que em alguns atendimentos “invadiu” a sala, demonstra preocupação e, muitas vezes, desespero. Catharina diz ver Nicolau como seu ?lho. Segundo ela, Rose brigava muito com ele quando ele era mais novo e, por esse motivo, elas decidiram que ele iria morar com ela, com a condição de que seria de?nitivo. Uma cortina divide o quarto que Nicolau compartilha com a avó. Catharina relata alguns medos em relação a Nicolau: não gosta que ele tenha amigos, nem que ele saia de casa. Conta que, quando Nicolau era pequeno, todas as atenções eram voltadas a ele; “a gente não deixava nem ele cair“. Depois, vieram os acontecimentos: “a chegada das duas irmãs, a separação de seus pais, ele indo morar comigo, o meu namorado“. Catharina diz não namorar em casa por respeito a Nicolau.

Com relação ao pai de Nicolau, o discurso da avó se mostra semelhante ao de Rose. Catharina a?rma que Nicolau “é louco pelo pai“, mas este não quer saber dele. Atualmente, o pai está com outra família e com um ?lho pequeno.

Observamos que a demanda por atendimento traduzia-se na queixa de manifestações de angústia juntamente com o nó aparente no qual a trama familiar se encontrava. A função materna, evidentemente, é ocupada pela avó. A sua mãe cria e cuida de suas duas irmãs, mas não de Nicolau. O nó que os une e que se faz ecoar nos sintomas de Nicolau vem anunciar que algo não está bem. Através do tratamento, teremos a possibilidade de estremecer esses lugares, para que surjam questionamentos passíveis de mudança.

Síntese das sessões

Nas primeiras sessões com Nicolau, ?ca evidente a impossibilidade do menino de se desgrudar das ?guras cuidadoras, principalmente da avó. Nos atendimentos que se seguem, a avó de Nicolau marca sua presença, pedindo para conversar em particular. Ao dizer se tratar de algo urgente, combinamos ocupar alguns minutos da sessão de Nicolau, mas que marcaríamos uma entrevista separada. Catharina relata que Nicolau não sabe ler nem escrever e que a professora o passou de ano por pena. O diretor pediu um exame neurológico, pois Nicolau demonstra, além dessas di?culdades na escola, desatenção e sonolência em aula.

Ao relatar sua relação com Nicolau, começa a ?car mais evidente qual o lugar que ele ocupa na vida da avó. Ela não o deixa sair de casa e não quer que ele faça amigos, ou seja, o quer só para ela. No tempo limitado que tínhamos, ela deixa mais evidente suas fantasias. Em relação a Nicolau ter amigos: “ele é muito bobinho, in?uenciável; depois vai que ele começa a se drogar com esses amigos, e fazer bobagem“.

No decorrer dos primeiros atendimentos, Nicolau demonstra certa colagem em relação aos brinquedos. Exemplo disso está em não conseguir montar uma casa de brinquedo diferente da ?gura da caixa. Porém, aos poucos, Nicolau vai se desprendendo em sessão, inventando brincadeiras, inserindo nessas brincadeiras regras e leis. Deste modo, ele vai conseguindo se autorizar mais em sessão e, mesmo que minimamente, tem a possibilidade de se desprender.

No tratamento, Nicolau demonstra desejo em certas atividades da escola: esportes e aulas extras. Nas sessões que prosseguem, Nicolau precisa con?rmar que vai ter alguém o esperando em casa quando voltar. Pergunta para a avó ou para a mãe, quando estas o acompanham ao tratamento, se elas o esperaram em casa logo após terminar a sessão. Nicolau começa a praticar as atividades que desejava, entre elas, jogar futebol e aulas particulares, demonstrando muita empolgação para com elas.

A avó marca presença nas sessões, dando alguns recados, querendo conversar, ou simplesmente invadindo a sala, dizendo-se desesperada. Dentre os recados, então, a disponibilidade da professora em conversar, mas o número da escola e/ou da professora me foi concedido com resistência. Após inúmeras tentativas de conversar com a professora, tornou-se evidente a impossibilidade disso acontecer. Peço, também, o telefone do pai de Nicolau. Novamente sinto a resistência da avó, que já se justi?ca de antemão, a?rmando que Ronaldo está sempre trocando o número do telefone, e frequentemente está muito ocupado.

Sem saber, neste momento, introduzo o pai nessa relação patológica na qual se encontra Nicolau. Ao nomear o pai em sessão, ?ca claro que ele é importante para a vida do menino, que é preciso saber sua posição, seu discurso, e sua presença na trama familiar. Conversar com o pai torna-se praticamente impossível. Os telefones que me foram concedidos só davam na caixa postal, impossibilitando meu acesso. Nas sessões seguintes, Nicolau demonstra muita insegurança nos jogos, ?ca ansioso e acha que vai perder sempre. Ele antecipa a perda, a todo o momento. Essa perda tão demarcada nas sessões pode indicar que Nicolau se percebe em um lugar de desvalia, isto é, desprotegido, o que, por sua vez, pode ter relação com a ausência da função paterna, ou o medo em perder o pai completamente. Assim, o menino faz suplência ao pai através de sua angústia. Ele demanda a função paterna para sair da posição de objeto na qual se encontra.

Agendo uma sessão separada com Catharina. Nesta consulta, algumas das fantasias inconscientes da avó se revelam, demonstrando um pouco mais a relação que ela possui com Nicolau e qual a posição que seu neto ocupa na estrutura dessa família. Catharina a?rma que Nicolau não se desgruda em nenhum momento e que está muito agressivo. Não sabe o que fazer.

O motivo mais aparente do descontrole da avó se faz desvelar na notícia que os vizinhos lhe dão. Estes a informaram que, quando ela está trabalhando, Nicolau ?ca na porta do prédio onde reside e, às vezes, caminha até a esquina. Ela ?ca furiosa por saber que ele andava na rua sem sua permissão, mesmo que só à frente de casa. Catharina diz amar Nicolau, mas não sabe se vai seguir morando com ele, se ele continuar agindo assim: “eu amo ele, mas desse jeito não vai dar. Não tenho mais idade“. No ?nal, marcamos outro horário.

Na nova sessão agendada, a avó a?rma que Nicolau está feliz agora, pois foi visitar o pai. Eis que o pai ?nalmente aparece, surpreendendo no desenrolar do tratamento. Catharina justi?ca que era aniversário de Ronaldo, e que ele entrou em contato, pedindo que o ?lho fosse passar o ?nal de semana com ele. Segundo o relato da avó, Nicolau ?cou muito feliz e teve que “implorar” que ela o deixasse ir. Ela relata que Nicolau adora vir à psicoterapia, mas que depois que começou o tratamento, ?cou muito medroso. Saliento que foi por esse motivo que ele começou o tratamento, mas Catharina a?rma que Nicolau ?cou mais medroso do que antes. A transferência se faz presente, sendo que o motivo do medo do paciente é transferido para mim, ou seja, é por causa do tratamento que Nicolau está pior.

Catharina relata que Rose é muito irritada com Nicolau, não tem paciência. “Mesmo sendo uma ótima ?lha, como mãe ela deixa a desejar“. No discurso da avó, Rose não é su?cientemente boa para o ?lho. Ao falar do neto, Catharina fala também de seus próprios medos: “o Nicolau é muito romântico, muito ingênuo, tem medo que as pessoas abandonem ele, daí ele não briga com ninguém. Tenho medo que façam chantagem com ele, que ele ?que apanhando, que nem ele apanha desse amigo que não é amigo, e não reage, depois vai lá e conversa com o menino de novo, tem medo de não gostarem dele“. No ?nal da consulta, sugiro a Catharina que procure atendimento psicológico para ela, no qual possa falar e re?etir sobre suas questões.

Na sessão seguinte com Nicolau, este chega demonstrando felicidade. Relata que foi ver o pai e que gostou muito. Era para ele ?car o ?nal de semana, mas permaneceu a semana inteira. Conheceu seu irmãozinho mais novo, que tem oito meses, e diz ter sido bem tratado. Relata que, no próximo feriado, está combinado de ele ir ver o pai novamente. Está animado, pois vai ver o pai com mais frequência. Nas sessões subsequentes, Nicolau relata que está indo sozinho para os atendimentos e para o treino de futebol.

Mais uma vez, é necessário agendar um atendimento com a avó, que seguia adentrando nos atendimentos do neto, demonstrando desespero. Ofereço um horário no qual Catharina está trabalhando, e Nicolau lhe alerta sobre isso. Ela diz conseguir sair do trabalho: “eu dou um jeito, faço tudo pela minha vida, meu amor (referindo-se ao Nicolau)“. O atendimento mostrou-se revelador. Catharina chega comentando que conseguiu dar uma “fugidinha” do serviço, pois trabalha há anos no mesmo local, e o patrão a conhece: “ele sabe que faço tudo pelo meu amor, minha vida“.

O discurso de Catharina em relação a Nicolau revela-se mais patológico no sentido de ele não estar no lugar de neto, ou mesmo, ?lho, mas de um marido, homem, amante. Seu desejo, demonstrado de forma impositiva, visa ao homem ideal, parceiro, companheiro. Catharina relata que um colega de trabalho tem dois ?lhos e que eles convidam Nicolau para brincar. Nicolau insiste, mas ela não deixa, pois tem medo.

A avó não consegue sustentar sua palavra, isto é, deixa Nicolau de castigo, mas logo o libera, a?rmando não saber guardar rancor, e que o neto “é romântico igual a ela“. Com relação ao menino morar com ela: “(…) ele é impossível, mas ele é minha vida. Já disse pra Rose que desse jeito não dá. Vou devolver ele pra ela… mas não vou, não consigo“. Catharina assume ter muitos medos, e se culpa pelo o que o neto está passando. Diz já ter passado por muita coisa na vida. Viu seu pai abusar de sua irmã, e sua mãe que prometeu sempre protegê-las não fez nada. Catharina não culpa sua mãe, “pois ela não estava em casa“, mas diz ter sofrido muito. Depois viu a história se repetir com a ?lha de Rose, “aquele horror na creche“. A?rma ter medo que façam algo semelhante ao Nicolau: “É disso que eu tenho medo que façam com o Nicolau, que o levem para o banheiro, que peçam pra ele fazer “coisas’… ele não sabe, é bobinho, e esses guris de hoje são violentos“. Nicolau lhe pediu para ir ao futebol sozinho. Ela não deixou, pois as ruas estão violentas e que ela iria atrás dele cuidando.

Dos amigos de Nicolau: “Ele (Nicolau) ?ca incomodando, quer trazer amiguinhos pra casa. Quer ir na casa dos amiguinhos, eu não deixo. Vai saber o que eles vão fazer? Eu não vou poder proteger….“. Ao ?nal da sessão, sugiro novamente que Catharina procure por atendimento psicológico, pois seria importante tanto para ela, como para Nicolau, ela ter um lugar em que pudesse falar mais sobre as suas questões.

Na semana seguinte, agendo uma sessão separada com Rose, que demonstra, neste momento, conseguir ocupar um lugar materno, fazendo-se mais presente na vida do ?lho. Rose con?rma o lugar que Nicolau está posicionado em sua relação com Catharina. Ela conta que seu padrasto faleceu logo quando Nicolau nasceu e, por esse motivo, Catharina se apegou muito ao neto, fazia e faz tudo por ele. Rose diz saber que o ?lho ama a avó de um jeito diferente. Diz saber do amor que seu ?lho tem por ela, mas com a avó é diferente: “eu sou a mãe dele, eu sei disso, mas a gente sente que eles se entendem…“.

Na sessão seguinte com Nicolau, começo a conversar sobre o término do tratamento, que está próximo. Ele comenta sobre seus amigos da escola. Relata que, na verdade, não são seus amigos, mas que gosta deles mesmo assim. Pergunto-lhe quem são seus amigos. Ele ?ca em silêncio, e fala sobre um menino que mora perto de sua casa, e de outro, mas que não lembra o nome. Nicolau demonstra não possuir amigos fora da escola; e os amigos da escola são violentos com ele, con?rmando as fantasias da avó.

No decorrer das demais sessões, Nicolau vai conseguindo, de sua forma, ir se autorizando e se desprendendo, lidando com regras e leis, inventando jogos, lidando com a perda, tendo a possibilidade de ter voz. Assim, Nicolau mostra-se cada vez mais desprendido, participando de atividades na escola, indo à casa de amigos estudar e brincar. Relata que está sendo convidado para aniversários de coleguinhas da escola e vai ter a possibilidade de se fazer presente. Conversamos novamente sobre o ?m do tratamento. Nas sessões seguintes, esse descolamento mostra-se mais evidente. Nicolau passou férias com seu pai e ?cou mais que o tempo previsto.

Na penúltima sessão, conversamos sobre o término do tratamento. Ressalto seus avanços e Nicolau concorda. Ele diz que gosta de ir às sessões, e reconhece que muitas coisas mudaram, para melhor. Na última sessão, aviso para Nicolau que há duas semanas tento contatar sua mãe e sua avó, mas que não tenho retorno. Digo que se sua mãe e sua avó quiserem conversar comigo, podem entrar em contato. Encerramos, então, o tratamento.

Na outra semana, recebo o telefonema da avó de Nicolau. Ela quer conversar, e se diz muito preocupada e desesperada. Catharina diz querer “entregar” Nicolau. Relata que ele incomodou muito para ir à casa de um amigo, e ela acabou deixando, mesmo contrariada. Nicolau disse a avó que os pais desse amigo sabiam que ele ia visitá-los. Quando chegou para buscar Nicolau, Catharina percebeu que os pais do amigo estavam reclamando, pois não queriam crianças no bar (na casa do amigo, tem um bar na frente). Ela justi?cou, dizendo que Nicolau tinha-lhe avisado que os pais sabiam que ele ia passar à tarde com eles, mas estes negaram. Segundo Catharina, “não admiti isso, do Nicolau ter mentindo pra mim. Daí o Nicolau veio, e perguntei pra ele porque ele tinha mentido. Ele me respondeu agressivo, e eu virei um tapa nele. Não me lembro disso, estava com raiva, não me lembro de ter dado o tapa“.

Catharina conta que chegou em casa e bateu de cinta em Nicolau. No outro dia, ela percebeu que o rosto dele estava vermelho e inchado: “perguntei se ele tinha apanhado na escola, porque ele é um boca aberta, um trouxa! Ele disse que não, perguntei de novo. A Rose, que estava junto, também perguntou. Aí ele falou que tinha sido eu, que na hora que ele me respondeu, eu larguei a mão nele“. Catharina relata que avisaram na escola sobre a agressão, e reuniram o conselho da escola juntamente com Rose. Esta não deixou Catharina ir à reunião da escola.

Catharina a?rma que Nicolau quer muito morar com o pai, e que ele voltou das férias muito bem: “ele veio das férias que passou com o pai maravilhoso, educado, parou de roer as unhas. Desde as férias com o pai ele não rói mais. Ele gosta de lá, voltou de lá, sentou comigo, parecia um adulto, e me explicou que ano que vem, ele vai ir morar com o pai, que o pai vai ver uma escola pra ele, e que, nos ?nais de semana, ele ia vir me visitar. Eu ?quei impressionada. Disse que também poderia ir visitar ele“. Depois de escutar e trabalhar ás preocupações da avó, rea?rmo-lhe o término do tratamento com Nicolau e reforço que, agora, o mais importante era eles conseguirem, a seu modo, resolverem estas questões.

Segundo Catharina, “ele melhorou muito mesmo, não está mais roendo as unhas, está bem na escola, está menos agressivo, menos ansioso, mas ele me pediu, que queria muito continuar contigo, ele te adora (…)“. Com esta última tentativa de sedução de Catharina, a?rmo-lhe que a minha indicação é que seria interessante eles resolverem estas questões, em relação ao Nicolau ir ou não morar com o pai e/ou seguir morando com ela. Era importante que eles estabelecessem laços, nos quais a autoridade fosse bem de?nida e exercida, e que certas questões deveriam ser trabalhadas por ela. Ressalto a necessidade de ela começar um tratamento psicológico. Esta foi minha indicação naquele momento. Catharina concordou.

Resultados do Teste das Fábulas

A partir do levantamento dos resultados do Teste Projetivo das Fábulas, o que podemos observar é que Nicolau está em uma situação em que seu estado emocional manifesta-se de forma depressiva e triste se sobressaindo também à manifestação de medo. não possam ser bem expressadas em relação aos pais, que ilustram as histórias. No entanto, nas respostas de Nicolau, ?ca evidente um empobrecimento simbólico, pois ele responde sem conseguir deslizar muito entre seus signi?cantes, mantendo-se colado a um discurso que pouco deixa escapar. Mas neste pouco que deixa escapar, abre-se o caminho para uma possível intervenção nessa rede familiar que se mostra entrelaçada as fantasias que se manifestam sob forma de angústia em Nicolau.

Discussão do caso clínico

No transcorrer dos atendimentos clínicos com Nicolau, foram se desenrolando os nós em que o mesmo se encontrava e que também se encontravam os sujeitos que o rodeavam. Já nas primeiras entrevistas, ?cou claro que o con?ito da trama edípica não se desfez. O que aparece como manifestaç&am

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