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A PSICANÁLISE ATRAVESSOU O SÉCULO XX E CONTINUA A SER DEBATIDA. POR QUAL RAZÃO?

Ricardo Dih Ribeiro

11/10/2021 20:13:19


A Psicanálise foi fundada no momento em que se começava a pensar com maior rigor científico os distúrbios mentais na Europa. Desde então, Freud e aqueles que o sucederam não pararam de produzir conhecimento, sempre a partir de constantes discussões decorrentes da prática clínica. O impacto da teoria freudiana no mundo foi tão grande, que se instalou na cultura de modo irremediável, e é comparada a outros grandes episódios da história. Soa difícil pensar que alguém hoje não a conheça, ou mesmo dela não tenha ouvido falar.


E qual foi essa marca, tão importante e polêmica?

Freud ainda é tratado como um pansexualista, mas, como costumo dizer, somente por aqueles que se restringiram a ler os primeiros capítulos de sua extensa obra. Durante a construção da primeira teoria da angústia, o que ocorreu até final da primeira década do século XX, dizia com todas as letras que a insatisfação sexual era a causa dos distúrbios nervosos. Foi um fato de época. Duas décadas depois, promoveu uma inversão para dizer que o recalque sexual funciona como uma proteção usada pelo aparelho psíquico, em função da intensidade desses estímulos. Gosto de pensar que, mais importante que obter satisfação, é saber o que fazer com ela. Mas, retomando sua pergunta, a proposta freudiana foi a de romper com os conceitos científicos que diziam que a sexualidade humana deveria seguir sobre trilhos (guiada pela consciência), e que os “desvios” de uma prática ortodoxa deveriam ser considerados como transtornos de comportamento. Assim, reposicionou o que é determinante no comportamento humano: a consciência não governa, mas sim o inconsciente. Isso constatamos todos os dias na Clínica, quando pacientes nos dizem “não sei porque faço isso…” ou “isso é mais forte do que eu”.

Esse reposicionamento então foi a grande sacada de Freud?

Eu diria que foi fundamental para pensar o homem de outra maneira. A consciência ganhou outro papel: até então era aquela capaz de explicar nossos atos, suas razões, e passou a ser vista como um meio de não permitir o acesso ao inconsciente. O que confirma esse preceito são também as narrativas cotidianas de pacientes que dizem “eu sei que isso me faz mal, já li muito, estudei, tenho plena consciência, mas não consigo deixar esse jeito de viver”. Poderíamos pensar também nos mais diversos medos que encontramos no dia a dia: de nada adianta ao fóbico saber das “razões” de seu medo, porque isso não é suficiente para deixar de vivê-lo. Ainda pensamos muitas vezes como os positivistas, vinculando um medo a um fato sabidamente ocorrido em algum momento da vida. Não é necessariamente assim.

Essa maneira de ver as coisas, não coloca a Psicanálise em conflito com outras disciplinas?

Posso responder de duas maneiras, sem excluir nenhuma delas. A primeira diz respeito à ação de algumas condutas que optam por promover um tratamento sintomático – a eliminação dos sintomas. A Psicanálise usa do sintoma para fazer com que o sujeito se implique nele, passe a se perguntar porque está aí, incomodando e gerando impedimentos em sua vida. A segunda nos remete a Freud, em um célebre texto intitulado O Mal Estar na Cultura, quando falava do que é capaz de acalmar o homem (irremediavelmente todos recorremos em alguns momentos da vida): os narcóticos (aqui podemos incluir os psicofármacos), as poderosas distrações e as satisfações substitutivas. Em outras palavras, dizia que a vida por vezes pode se tornar insuportável sim. Neste sentido, a Psiquiatria, por exemplo, pode caminhar com a Psicanálise no acompanhamento de alguém que experimenta grande sofrimento.

Essa união de duas disciplinas é o mais usual?

Recorrer ao uso de psicofármacos para lidar com os chamados transtornos neuróticos é uma escolha exclusiva do paciente. Muitas vezes há indicação do uso de substâncias, mas há também um expressivo desejo do paciente em saber o que lhe ocorre somente através da análise. Se pensarmos na atual literatura, no cenário mundial, a recomendação é a de sempre considerar a possibilidade de disponibilizar ao paciente os cuidados que possam melhor lhe beneficiar, ou seja, o tratamento psíquico e o psicofarmacológico.

Essa é uma visão mais recente. A Psicanálise vai caminhar por aí? Qual seu futuro?

A Psicanálise preservou ao longo do tempo sua premissa fundamental: a curiosidade sobre o inconsciente. Um analista é, antes de tudo, um curioso, alguém que quer saber a respeito de como isso se processa de maneira personalíssima em cada pessoa. Assim, quando chegamos a saber um pouco mais sobre o próprio desejo, nos comprometemos também com suas consequências. Se Freud se dedicava ao sentido dos transtornos psíquicos, o que vemos hoje é uma significativa falta de sentido naquilo que ronda muitas ações em nossas vidas. A Psicanálise está debruçada sobre isso, em provocar a invenção de um sentido onde ele não existe. É sem dúvida, um percurso marginal ao senso comum, mas que confere um privilégio sem precedentes, porque permite ao sujeito a capacidade de gerir a própria vida a partir do abandono dos sentidos apreendidos até então. Dizia no início que a Psicanálise deixou marcas irremediáveis na cultura. Não é à toa que a clínica do singular, do único, tem provocado outras disciplinas. A partir do mapeamento genético, começou-se a pensar no tratamento individualizado de cada ser humano. Dou um exemplo da Farmacologia: se hoje todos usamos uma dosagem padrão vendida nas farmácias para uma dor de cabeça, em breve essa dosagem poderá ser oferecida de maneira particular a cada um, reduzindo-a ou aumentando-a com precisão e maior eficácia. Já vivemos desdobramentos dessa natureza. Profissionais de diferentes áreas empenham-se há algum tempo em considerar as necessidades de cada cliente ou paciente de maneira individualizada, diria, mais que, ímpar. Na contramão da globalização, a Psicanálise continua produzindo seus efeitos e fazendo barulho.





MATÉRIA POR

ADRIANO MARTENDAL

PSICOLOGIA

CRP 12/02276 | FLORIANÓPOLIS

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